Quando desabou, como um castelo de cartas, o conglomerado da antiga União das Repúblicas Socialistas Soviéticas (URSS), houve quem dissesse estar demonstrando que, enquanto o capitalismo é uma realidade, o socialismo seria uma utopia. Abstração feita da desavisada proclamação do “fim da história”, insubsistente qualquer que seja sua interpretação, o certo é que, passados poucos anos, o socialismo ressurgiu em surpreendentes combinações com agremiações conservadoras do capitalismo, tal como se verifica da Inglaterra à Alemanha, da Espanha à Itália.
Ante essas ocorrências, que denotam uma inesperada “convergência de ideologias”, tal como penso ter demonstrado em meu ultimo livro, O Estado Democrático de Direito e Conflito das Ideologias, é preciso reexaminar o assunto, com serena objetividade chegando à conclusão de que o que soçobrou foi o socialismo real, ou, por melhor dizer, o socialismo cientifico, que, com base nos ensinamento de Karl Marx, pretendia ter comprovado a tese da catástrofe inevitável do capitalismo, de cujas ruínas surgiria a vitoriosa sociedade comunista, como o reino da igualdade e da justiça social. A bem ver, podemos dizer que, ao contrário da pretensiosa profecia Marxista, o que subsiste é antes o tão criticado e renegado socialismo utópico, isto é, o socialismo como ideal e perene aspiração de, por todos os meios, ir-se alcançando maior igualdade entre os homens sem ser necessário para tanto subverter as estruturas capitalistas, sendo preservados, concomitantemente, os valores da liberdade e da democracia. O que se da é uma mudança de enfoque ou de paradigma, passando-se a ter como pólo referencial, ou como fulcro do processo de desenvolvimento, não o Estado -concebido como instrumento do advento comunista ou, então, como instrumento do capitalismo- mas, sim, a sociedade civil, base histórica natural de qualquer progresso positivo. As diversas combinações político-partidárias de nossos dias, que apresentam antigos adeptos do comunismo de mãos dadas com notórios conservadores, para exercerem em conjunto as tarefas governamentais, resultam do novo e realístico propósito de que o que importa é adequar cada vez mais as soluções políticas e administrativas as diversas e distintas conjunturas da sociedade civil, superados os conflitos ideológicos vigentes no segundo após-guerra. Ora, é a luz deste paradigma inovador que devemos analisar o fato capitalista, indagando de seu destino, o que evidentemente não poderá ser feito por um economista convicto de que tudo já estaria d antemão resolvido, visto não haver outro remédio senão aguardar, com passiva confiança, os resultados que, mais tarde ou mais cedo, seria propiciados pelas forças mesmas do mercado, em virtude do suposto valor intocável da livre concorrência, mãe de todas as possíveis benesses. É com base nessa crença absoluta que Hayek e seus seguidores não hesita em considerar a justiça social, uma expressão sem sentido, mera ilusão de quem ignora as leis positivas do mundo econômico. Pois bem, estou convencido de que esse pretenso capitalismo cientifico é tão insubsistente e ilusório quanto o socialismo científico, razão pela qual, através de múltiplos caminhos, socialismo e liberalismo tendem a se compor, neste fim de milênio, no sentido de uma solução social-liberal, resultado de recíprocas influencias. Isto posto, não creio que a grave crise atual do capitalismo, com alarmante desemprego desigualdades cada vez mais revoltantes entre nações privilegiadas e nações de Segundo ou Terceiro Mundo -Sem se olvidarem os desastres ecológicos que a tecnologia pode acarretar quando entregue ao livre jogo de interesses privados-, possa ser resolvida tão somente mediante medidas de natureza econômica e financeira, máxime num mundo globalizado, no qual imensas forças capitalistas não obedecem senão ao imperativo de seu próprio interesse, à margem de qualquer valida e eficaz interferência por parte dos Estados chamados soberanos. Estou convencido de que o superamento da crise capitalista depende tanto de providências econômicas quanto de determinações éticas e políticas, a fim de que não se assista o drama de um mundo, no qual cada progresso tecnológico importa em redução dos postos de trabalho, como fria e inexorável consequência da redução do número de máquinas indispensáveis à produção.
É possível que tais desequilíbrios possam vir a ser superadas graças apenas às leis competitivas do mercado, mas as necessidades vitais dos trabalhadores e de suas famílias não podem aguardar indefinidamente os reajustes espontâneos pregados pelos mentores do neoliberalismo. A bem ver, o que está em jogo não é apenas o bem-estar de milhares e milhares de pessoas, expulsas dos quadros produtivos, mas é o próprio destino da economia capitalista, exigindo sua revisão. Era de se esperar, em suma, que o aumento da produtividade mecânica gerasse não o desemprego, mas a redução das horas de trabalho, com acréscimo das horas de lazer, mas, posta a questão em termos puramente monetários, é o contrario que acontece. Resta ver se pode subsistir para todo o sempre uma ordem econômica baseada apenas em cálculos hedonísticos, abstração feita dos valores comunitários. Pois bem, o que acontece no plano das relações individuais se repete, em mais trágica escala, nas relações internacionais, com países cada vez mais ricos e países cada vez mais pobres, aqueles lançando mão de todos os recursos para reduzir os preços das mercadorias exportadas pelos subdesenvolvidos. Não me parece razoável, em suma, que, ao mais leve indício de queda nos valores do mercado, a solução imediata e inexorável seja a despedida dos empregados, ou as medidas de proteção alfandegária, como se a saúde do capitalismo global pudesse suportar por longo tempo tais desequilíbrios, a pretexto de que, mais tarde ou mais cedo, a mão oculta da livre concorrência colocará tudo no seu devido lugar.
(Artigo publicado no “Estado de São Paulo”, em 17/04/1999) *Jurista, filósofo, membro da Academia Brasileira de Letras, foi Reitor da USP, e foi Membro do Conselho Supremo da Ação Integralista Brasileira, nos anos 30.