A Grécia está enfrentando um tremendo problema de dívida pública e uma crise humanitária. A situação atual é muitas vezes pior do que a de 2010, quando a Troika –FMI, Comissão Europeia e Banco Central Europeu – impôs seu “plano de resgate” ao país, justificado pela necessidade de apoiar a Grécia. Na realidade, tal plano tem sido um completo desastre para a Grécia, pois o país não tem obtido absolutamente nenhum benefício com os peculiares acordos de dívida implementados desde então.
O que quase ninguém comenta é que um outro exitoso plano de resgate foi efetivamente implementado naquela mesma época em 2010, não para a Grécia, mas para os bancos privados. Por trás da crise grega há um enorme e ilegal plano de resgate de bancos privados. E a forma pela qual tal plano está se dando representa um imenso risco para toda a Europa.
Depois de cinco anos, os bancos conseguiram tudo o que queriam. Por outro lado, a Grécia mergulhou numa verdadeira tragédia: o país aprofundou gravemente seu problema de dívida pública; perdeu patrimônio estatal à medida em que acelerou o processo de privatizações, assim como encolheu drasticamente sua economia. Pior que tudo, tem amargado imensurável custo social representado pelas vidas de milhares pessoas desesperadas que tiveram seu sustento e seus sonhos cortados pelas severas medidas de austeridade impostas desde 2010. Saúde, educação, trabalho, assistência, pensões, salários e todos os demais serviços sociais têm sido afetados de forma destrutiva.
A distribuição do Orçamento Nacional da Grécia mostra a predominância dos gastos com a dívida sobre todos os demais gastos estatais. De fato, os gastos com o pagamento de empréstimos, outras obrigações de dívida, juros e outros custos absorvem 56% do orçamento estatal. ( NO BRASIL A PROPORÇÃO É DE 43% DE TODO ORÇAMENTO).
Em Maio de 2010, ao mesmo tempo em que todas as atenções estavam focadas nas abundantes notícias sobre a interferência da Troika na Grécia, com seu peculiar “plano de resgate” grego, um outro plano de efetivo resgate bancário viabilizado por um conjunto de medidas ilegais também estava sendo aprovado, mas atenção alguma foi dispensada a esse último.
Em uma tacada, sob a justificativa de necessidade de “preservar a estabilidade financeira na Europa”, medidas ilegais foram tomadas em maio de 2010, a fim de garantir o aparato que permitiria aos bancos privados livrar-se da perigosa “bolha”, isto é, da grande quantidade de ativos tóxicos – em sua maioria títulos desmaterializados e não comercializáveis – que abarrotava contas “fora de balanço” em sua escrituração contábil. O objetivo principal era ajudar os bancos privados a transferir tais ativos tóxicos para os países europeus.
Uma das medidas adotadas para acelerar a troca de ativos de bancos privados e acomodar a crise bancária foi o programa SMP , mediante o qual o BCE (Banco Central Europeu) passou a efetuar compras diretas de títulos públicos e privados, tanto no mercado primário como secundário. A operação relativa a títulos públicos é ilegal, pois fere frontalmente o Artigo 123 do Tratado da União Europeia. Tal programa constitui apenas uma entre várias outras “medidas não-padronizadas” adotadas na época pelo BCE.
Juntos, o programa SMP e a companhia EFSF representaram os complementos cruciais para o esquemade alívio de ativos, necessário para concluir o suporte aos bancos privados iniciado desde o início de 2008, por ocasião da crise financeira nos Estados Unidos e Europa. Desde o início de 2009 os bancos privados vinham demandando por mais suporte público para descarregar a excessiva quantidade de ativos tóxicos que abarrotava suas contas “fora de balanço”. O atendimento a essa demanda poderia se dar tanto mediante compras diretas governamentais, como por meio de transferências para companhias independentes de gerenciamento de ativos. Essas duas soluções restaram atendidas pelo SMP e pela EFSF, e as perdas relacionadas aos ativos tóxicos estão sendo repartidas entre os cidadãos europeus.
A troca de ativos tóxicos de bancos privados para uma companhia por meio de simples transferência, sem o devido pagamento e a operação de compra/venda seria ilegal frente às normas contábeis. EUROSTAT modificou tais regrase permitiu a “liquidação de operações conduzidas mediante troca de títulos”, justificando tal ato por “circunstâncias específicas da turbulência financeira”.
Os instrumentos financeiros utilizados pela EFSF são os mais arriscados e restritos, desmaterializados, não comercializáveis, tais como Floating Rate Notes tipo Pass-trough, arranjos cambiais e de hedge, e outras atividades de co-financiamento que envolvem o administrador britânico Wilmington Trust (London) Limited como o instrutor para a emissão de títulos restritos, não-certificados, que não podem ser comercializados em nenhuma bolsa de valores legítima, pois não obedecem às regras exigidas para títulos de dívida soberana. Este conjunto de instrumentos financeiros tóxicos representa um risco para os Estados-Membros, cujas garantias podem ser exigidas para pagar por todos os produtos financeiros da empresa luxemburguesa.
Um escândalo de grande proporção teria ocorrido em 2010, se esses esquemas ilegais tivessem sido revelados: a violação do Tratado da UE, as alterações arbitrárias nas regras processuais por parte do BCE, Eurostat e do FMI, bem como a associação dos Estados-Membros à companhia privada de propósito especial em Luxemburgo. Tudo isso apenas para resgatar bancos privados, às custas de um risco sistêmico para toda a Europa, devido ao comprometimento dos Estados-Membros com garantias bilionárias que cobririam ativos tóxicos problemáticos não comercializáveis e desmaterializados.
Este escândalo nunca aconteceu, porque em maio de 2010, a mesma reunião extraordinária do Conselho de Assuntos Econômicos e Sociais da Comissão Europeia que discutiu a criação da companhia luxemburguesa EFSF “Veículo de Propósito Especial”, deu uma importância especial para o “pacote de apoio à Grécia”, fazendo parecer que a criação daquele esquema era para a Grécia e que, ao fazê-lo, estariam garantindo a estabilidade fiscal para a região. Desde então, a Grécia tem sido o centro de todas as atenções, persistentemente ocupando as manchetes dos principais veículos de comunicação de todo o mundo, enquanto o esquema ilegal que efetivamente tem suportado e beneficiado os bancos privados permanece nas sombras, e quase ninguém fala sobre isso.
O relatório anual do Banco da Grécia mostra um acentuado crescimento nas contas “fora de balanço” relacionadas a ativos financeiros em 2009 e 2010, em quantidades muito maiores que o total de ativos do Banco, e esse padrão continua nos anos seguintes. Por exemplo, no Balanço Contábil do Banco da Grécia de 2010, o total de ativos em 31/12/2010 era 138,64 bilhões de euros. As contas “fora de balanço” naquele ano chegou a 204,88 bilhões de euros. Em 31/12/2011, enquanto o total dos ativos do Balanço somou 168,44 bilhões de euros, as contas “fora de balanço” atingiram 279,58 bilhões de euros.
Assim, a transferência de ativos tóxicos dos bancos privados para o setor público tem sido um grande sucesso: para os bancos privados. E o Sistema da Dívida tem sido a ferramenta para acobertar isso.
A Grécia foi trazida a este cenário depois de vários meses de pressão persistente por parte da Comissão Europeia, devido a alegações acerca de existência de um excessivo déficit orçamentário, além de inconsistências em dados estatísticos. Passo a passo, um grande problema foi criado em torno dessas questões, até que em maio de 2010 o Conselho de Assuntos Econômicos e Financeiros declarou: “na sequência da crise na Grécia, a situação nos mercados financeiros é frágil e havia um risco de contágio”. E assim a Grécia foi submetida ao pacote que incluiu a interferência da Troika com as suas severas medidas inseridas em planos de ajuste anual, e um peculiar acordo bilateral, seguido por “empréstimos” da EFSF lastreados em instrumentos financeiros de risco.
Talvez essa humilhação se deva ao fato de que a Grécia tem sido historicamente uma referência mundial para a humanidade, pois ela é o berço da democracia, o símbolo da ética e dos direitos humanos. O Sistema de Dívida não pode admitir tais valores, pois não possui o menor escrúpulo em provocar danos a países e povos para obter seus lucros.
O Parlamento grego já instalou a Comissão da Verdade sobre a dívida pública e nos deu a chance de revelar esses fatos; tão necessários para repudiar o Sistema de Dívida que tem subjugado não só a Grécia, mas muitos outros países, sob a espoliação do setor financeiro privado. Somente por meio da transparência e do acesso à verdade os países irão derrotar aqueles que querem colocá-los de joelhos.
Já é chegado o tempo para que a verdade prevaleça, o tempo para colocar os direitos humanos, a democracia e a ética acima de quaisquer interesses inferiores. Esta é uma tarefa para a Grécia e a Humanidade, a ser cumprida já.
*Maria Lucia Fattorelli é graduada em Administração e Ciências Contábeis. Auditora Fiscal da Receita Federal desde 1982, é coordenadora da Auditoria Cidadã da Dívida e membro do CAIC (Comisión para la Auditoría Integral de Crédito Público) criada pelo Presidente Rafael Correa em 2007.