Extraído do livro Reconstrução do Homem, Plínio Salgado, 1957
“As intrínsecas questões políticas, de ordem internacional, que avassalam os povos e lançam as nações em perplexidade diante do dilema da paz e da guerra, originam-se de angústias sociais que parecem assinalar o período de transição em que a humanidade se esforça por adaptar-se a novas condições de vida, conseqüentes do desenvolvimento da técnica moderna”.
No fundo, o tema que serve de objeto às controvérsias dos dois mundos – o mundo ocidental e o mundo oriental, esse tema que se interpreta segundo dois critérios opostos (o do capitalismo burguês e liberal em contrapartida ao socialismo evolucionista ou revolucionário) é um tema cujas raízes se embebem num conceito de moralidade.
A luta que se desenha nas assembléias das Nações é uma luta entre duas concepções de vida. Enquanto o capitalismo industrialista e comercialista pretende sobreviver à inexorável revolução social mediante a imposição de um critério liberal aos governos e a aplicação de processos que constituem uma espécie de tecnocracia, tudo baseado num conceito materialista do homem e da sociedade, o socialismo por outro lado sacode as estruturas da chamada civilização ocidental, servindo-se do espírito de revolta que leva ao desespero as multidões menos favorecidas no que concerne à distribuição dos bens terrenos. * * * *
Ambos – o capitalismo e o socialismo – são intrinsecamente materialistas. A diferença entre um e outro está em que o primeiro não toma conhecimento de outros fins do homem e da sociedade, além dos meramente temporais, ao passo que o socialismo nega terminantemente quaisquer outros fins sociais ou humanos que não seja aqueles mesmos fins temporais de que o capitalismo cogita. Além dessa diversidade, cumpre notar que o materialismo capitalista não objetiva nenhuma finalidade moral, ao passo que o materialismo socialista preocupa-se com o ideal da justiça, trazendo, pois, um conteúdo moral, ainda que essa moral tenha caráter exclusivamente utilitário.
Difícil, portanto, será as democracias capitalistas sustentarem-se no curso da atual transformação do mundo. O materialismo será destruído pelo próprio materialismo e essa civilização de que tanto nos orgulhamos – se não se embasar em alicerces espiritualistas e cristãos – não encontrará nenhum meio de manter-se.
Analisando a fundo as estruturas da civilização ocidental, verificamos que elas se deterioram por motivos incontestavelmente morais. E a causa mais direta desse esboroamento reside na incapacidade do homem do nosso tempo em se afirmar na plenitude da sua virilidade.
Se os Estados não sabem ou não podem governar-se e se entregam ao fatalismo dos acontecimentos históricos internacionais, que diretamente influem no próprio teor de sua vida interna, esse fato não deve causar admiração numa época em que o mesmo homem também não sabe mais governar-se.
A incapacidade de governo próprio em cada pessoa que constitui a coletividade nacional é uma conseqüência da inversão dos valores, com predominância de uma sensualidade grosseira, que leva o homem do nosso tempo à mais degradante situação de um comodista fatalista, o qual impede de rebelar-se contra as imposições crescentes de um industrialismo ganancioso. * * * *
Mil instrumentos de dominação técnica amarram o homem dos nossos dias ao carro vitorioso da produção em massa. Falta a esse mísero ser do século XX a capacidade viril para quebrar as próprias algemas. Na classe média – onde se encontram aqueles que conduzem as massas proletárias pelos caminhos da revolução – agitam-se, bracejam, desesperam-se indivíduos cujos orçamentos domésticos são permanentemente deficitários. O aumento dos salários, a principiar pelos que vivem do erário público (senadores, deputados, ministros, secretários de Estado, diretores de repartição, chefes de seção, oficias do Exército e da Marinha, magistrados, professores, até aos contínuos de repartição e praças) determina inapelavelmente o recurso da inflação, de que decorre o encarecimento das utilidades. Empobrecido o Estado, a sua miséria reflete-se na exigüidade dos transportes, na deficiência das vias férreas, das estradas de rodagem, dos navios mercantes, o que por sua vez determina a decadência das zonas rurais pela falta de estímulo e de assistência à agricultura. Como conseqüência, temos os espaços vazios, a evasão dos campos, a superpopulação dos centros urbanos, o que vem agravar o custo de vida.
Nessa situação de angústia, o homem da cidade é um desesperado; mas esse desespero eleva-se ao mais alto grau se considerarmos a tirania dos costumes burgueses, que forçam o chefe de família a curvar a cabeça diante das exigências da esposa, das filhas, as quais perderam completamente o bom senso cristão da vida, porfiando com a família do vizinho – que é outro desgraçado – na exibição de um padrão de vida em desconformidade com a renda do casal. As crescentes despesas levam o homem desvirilizado do nosso tempo a concordar com a mulher ou as filhas em que estas trabalhem fora do lar para que aumente, dessa forma, a arrecadação da república doméstica. Mas aí começa o homem efeminado do nosso tempo a perder a sua autoridade. Nada pode objetar a novos gastos, porque afinal de contas o dinheiro não vem apenas por seu intermédio. Então, os vencimentos femininos vão se aplicando em novas superfluidades, que muitas vezes transcendem às possibilidades de toda a arrecadação da casa, avultando os déficits da família. e mesmo quando as mulheres da casa não trabalhem há sempre o exemplo a citar das que trabalham, de sorte que, para evitar os queixumes, o homem moderno prefere não dar mais a sua opinião, sacrificando-se além de suas forças. Aí começa o demônio do desespero, com seus olhos vítreos e sua voz ciciante, a segredar ao títere os meios com que prover as cada vez maiores necessidades. Surgem os planos das negociatas em detrimento do tesouro público; arquitetam-se os meios de obter dinheiro através de subornos; engendram-se hábeis malversações e – o que é mais comum – as transações políticas pelas quais o homem do nosso tempo vende a sua consciência em troca de empregos e sinecuras rendosas.
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b>O homem moderno sujeita-se aos papéis mais ridículos; vende os seus pareceres; mercadeja o seu voto; comercializa as suas decisões; trafica a própria alma com os banqueiros, com os políticos, com os poderosos das finanças ou do Estado; e, de tal forma anestesia a sua sensibilidade, que já não encontra motivos de vergonha nos atos mais indecorosos que pratica.
Esse é o aspecto geral da sociedade burguesa, da civilização capitalista, onde o dinheiro vale tudo, a virtude vale nada e o homem ainda menos vale. Processa-se a destruição das personalidades de maneira tão veloz que dentro em breve não haverá mais resistências possíveis a contrapor-se à catástrofe socialista em que sucumbe, definitivamente, o orgulhoso “homo sapiens”. * * * *
Urge, por isso, uma revolução espiritualista profunda. Impõe-se a reconstrução do homem. Essa reconstrução deverá começar pela restauração da autoridade familiar, baseada num conceito de vida cristã. Porque – e assim reza o Evangelho – não é possível servir a dois senhores. Ou se serve a Cristo ou a Mamon. E Mamon é o terrível e trágico sentido do materialismo socialista de um Estado que assume as rédeas do governo de cada um, quando em cada um desapareceu a capacidade de governar-se.”